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O Adocionismo

Redação (11/02/2015, Virgo Flos Carmeli) Seria ingênuo pensar que os movimentos históricos se dão por mera espontaneidade. Na verdade um conhecimento histórico mais aprofundado dos fatos pode nos demonstrar que a força motriz do homem, e por decorrência, da história, está nas paixões humanas. Estas se bem direcionadas e regradas podem fazer dos homens verdadeiros heróis, no sentido mais fiel e verdadeiro da palavra. Contudo, se as paixões forem mal conduzidas podem desencadear verdadeiras revoluções.

Por revolução entendemos um movimento de coisas opostas ao seu correto fim, uma subversão de valores e de conceitos, que pode produzir verdadeiras catástrofes na sociedade. Esse movimento tem como motor e eixo de suas operações duas paixões:

“Duas noções concebidas como valores metafísicos exprimem bem o espírito da Revolução: igualdade absoluta, liberdade completa. E duas são as paixões que mais a servem: o orgulho e a sensualidade. […]

“A pessoa orgulhosa, sujeita à autoridade de outra, odeia primeiramente o jugo que em concreto pesa sobre ela. […]

“A par do orgulho gerador de todo igualitarismo, a sensualidade, no mais largo sentido do termo, é causadora do liberalismo. É nestas tristes profundezas que se encontra a junção entre esses dois princípios metafísicos da revolução, a igualdade e a liberdade, contraditórios em tantos pontos de vista.”[1]

Apliquemos essas palavras ao fato histórico objeto do presente artigo para que o leitor possa concluir qual foi o fator que levou ao surgimento da heresia adocionista.

1. A história: Elipanto de Toledo e Felix Urgel

Elipanto era da raça goda, foi arcebispo metropolitano de Toledo, que estava sob o domínio maometano. E foi desta Sé que infelizmente fez propagar o seu veneno. A história o descreve como um homem de grande gênio, ardoroso e eloqüente. Contudo não soube usar de tais aptidões para a propagação da Igreja, e pelo contrário, devido a sua arrogância e orgulho, usou-os para propagar a heterodoxia.

Felix de Urgel, bispo desta mesma cidade, é o segundo defensor dessa heresia. Companheiro de Elipanto, apesar de ser espanhol era súdito de Carlos Magno, uma vez que a cidade de Urgel acabava de ser dominada pelos Francos.

2. A heresia

A heresia adociaonista, é no fundo um reaparecimento do nestorianismo (que afirmava a dupla personalidade de Nosso Senhor), como o próprio Papa da época, Adriano I, denominava. Essa afirmação se dá porque, ao admitir uma dupla filiação em Cristo (uma por naturalidade e outra por adoção), admite também uma dupla personalidade:

“Admite, pois em Cristo duas filiações, e aqui esta o erro, pois a filiação vai com a pessoa, e havendo duas filiações, logicamente se segue que haverá também duas pessoas, o que é puro nestorianismo. […] o adotar a alguém por filho supõe duas pessoas distinta: a que adota e a que é adotada; filho natural e filho adotivo com relação a um mesmo pai são coisas que se excluem em um mesmo sujeito.”[2]

A afirmação adocionista é, portanto um absurdo teológico, pois como a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo está unida intimamente com a própria Pessoa do Verbo, não pode haver uma dupla filiação, como nos ensina Ott:

“A humanidade de Cristo veio a ser, pela união hipostática uma parte, em certo modo da pessoa do Logos e, por Ele, é adorada em e com o Logos. Ela é em si mesma objeto de adoração.”[3]

A heresia adocionista aparece pela primeira vez nos escritos de Elipanto, quando refutava um erro de certo Miguécio que divulgava o sabelianismo. Elipanto com sua carta refuta tais erros porém vem inoculada em sua doutrina uma grave heresia: há em Jesus Cristo uma dupla filiação: uma natural, da qual procede a sua natureza Divina, e outra adotiva, da qual procede a sua natureza humana:

“Em tais documentos aponta com claridade o adocionismo. Depois de fazer uma perfeita exposição da doutrina católica sobre a Trindade, ao querer distinguir em Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, as operações e ações de suas duas naturezas, afirma […] que Jesus Cristo, enquanto Deus e Verbo Eterno, é filho próprio e natural de Deus, mas em quanto homem, é apenas filho adotivo e por graça, não por natureza.”[4]

Como foi dito mais a cima, Félix de Urgel, era súdito de Carlos Magno. O Imperador ao ouvir os rumores de heresia que se andava espalhando, por meio dos escritos e pregações de Félix, mandou convocar uma assembléia, em Ratisbona (792), na qual teve que comparecer o mesmo bispo. Dando-se por vencido, o prelado de Urgel abjurou sobre os Evangelhos tudo o que havia afirmado antes.

Ainda não contente com o resultado, o Imperador mandou Félix ao Papa Adriano I, e na Basílica de São Pedro o Bispo de Urgel fez uma solene profissão de fé, assim nos relata Garcia-Villoslada:

“Carlos Magno reuniu a assembléia de prelados, entre eles Paulino de Aquilea, em Ratisbona (792), e ordenou que Félix comparecesse ante eles para expor as razões de sua doutrina. Assim o fez o bispo de Urgel, e, vencido na disputa pelos argumentos contrários, abjurou publicamente sobre os Evangelhos. Querendo o rei franco fazer ao papa o obséquio deste vencido, Félix teve que apresentar-se em Roma, e primeiro na Basílica de Latrão, e depois na de São Pedro, reiterou sua abjuração, protestando que jamais daria ao Salvador o título de filho adotivo.”[5]

Porém na primeira oportunidade que teve, Félix fugiu para Espanha, a fim de ficar nas proximidades do seu cúmplice, isto é Elipanto.

Alguns historiadores afirmam que nesta ocasião os Bispos de Espanha escreveram uma carta ao Papa, apoiando inteiramente a heresia adocionista. Entretanto a doutrina mais segura é de que tal escrito foi redigido pelo próprio heresiarca Elipanto, devido a rudez e intemperança de sua linguagem, e a ciência que pôs em tal epistola não é fruto senão da inteligência de Félix.

3. Beato e Etério

Os primeiros a se oporem a heresia adocionista foram dois cristãos das Astúrias os quais se chamavam Beato (ou Biego) e Etério. O primeiro tem um elogio vindo do próprio Alcuino: “doctus vir, tam vita quam nomine sanctus”. Ambos redigiram uma apologia da verdadeira doutrina, de maneira calorosa e polêmica.

Esta apologética pode ser indigesta nos dias em que vivemos, pois um público entibiado não compreenderá a fé tão ardorosa e polêmica da Espanha dos antigos tempos. Sem baixeza de linguagem, os dois defensores da ortodoxia fulminam os bispos heréticos. E desses dois homens valorosos se disse:

“Sua teologia é sã, forte e ardorosa, apoiada constantemente nos textos da Sagrada Escritura, […] No fundo, Beato e Etério são muito fiéis à tradição isidoriana; mas conhece-se logo que sua apologia não nasceu entre as pompas de Sevilha ou de Toledo, senão em terra áspera, agreste e bravia, entre eriçados riscos e mares tempestuosos, para ser escutada por homens não tranqüilos nem dados às letras, senão acostumados a continua devastação e peleja.”[6]

E tal apologia foi encerrada com um anátema do prelado Teudula: “Si quis carnem Christi adoptivam dixerit Patri, anathema sit. Amen”.

4. Carlos Magno, Alcuino e o Sínodo de Frankfurt

Alarmado pelo grande perigo de cair o Império do Ocidente em heresia, e tendo bem na sua memória os estragos causados pelos cismas e heresias no Império do Oriente, Carlos Magno exerce a sua função de defensor a Igreja. Convoca um Sínodo em Frankfurt e pede ao Papa seu assentimento, o qual dá consentimento e envia seus legados. Estes portavam consigo uma carta dogmática do próprio Adriano I que definia ser o Filho da Virgem, um só Filho verdadeiro de Deus.

“Se portanto, é verdadeiro Deus aquele que nasceu da Virgem, como pode ser adotivo ou servo? Com efeito, não ousais absolutamente designar Deus como servo ou adotivo; e mesmo se o profeta o chamou servo, não foi todavia por causa da condição de servidão, mas por causa da obediência e da humildade, pela qual Ele se fez ‘obediente’ ao Pai ‘até à morte’.”[7]

Entretanto os adocionistas não dobraram-se às decisões do Pontífice e do Sínodo, e recralcitaram nos seus erros, não só defendendo-os como também divulgando-os.

Alcuino ao saber da teimosia dos dois hereges adocionistas, tenta convencê-los escrevendo-lhes cartas amáveis e persuasivas, entretanto os seus esforços são nulos, pois o orgulho havia dominado inteiramente a alma deles.

 5. Leão III e o ponto final

O ponto final desta heresia foi dado pelo Papa Leão III, em um concílio realizado em Roma (789), o qual lançou um solene anátema contra Félix de Urgel.[8] Do Bispo Elipanto a história não faz mais menção, mas é mais provável que, devido ao seu caráter arrogante e orgulhoso, tenha persistido no seu erro. Contudo, de Félix ainda sabemos alguns pormenores.

Carlos Magno convidou o heresiarca adocionista para uma disputa, dando-lhe um salvo conduto, como segurança da sua liberdade, pelo que Félix aceitou. As exposições do herege duraram sete dias, e estas eram refutadas logo depois pelo bispo Alcuino, usando citações dos Santos Padres.

Por fim o herege sede à verdade. Fazendo uma abjuração ex toto corde e logo depois uma profissão de fé absque ulla simulatione. Entretanto o Imperador não deixou que ele retornasse a Urgel. Entregando por fim a sua alma a Deus em Lion no ano 818, e como alguns dizem morreu em odor de santidade, devido as suas penitências:

“Com tudo, não lhe permitiu Carlos Magno regressar a sua diocese e em Lion o alcançou a morte no ano 818. Morreu, segundo parece, santamente, e como santo o tem venerado a Igreja de Urgel.”[9]

Conclusão

Após termos visto o surgimento da heresia adocionista, e a reação da Igreja, podemos verificar que a maioria dos movimentos ruins da sociedade humana, têm sua origem em duas paixões desregradas: o orgulho e a sensualidade.

Surge, porém, uma pergunta: qual é o fator que leva os bons a reagirem? Sem dúvida alguma existe uma força que move um movimento contrário à revolução das paixões:

“Existe também uma dinâmica contra-revolucionária, mas de natureza inteiramente diversa. As paixões, enquanto tais – tomada aqui a palavra em seu sentido técnico – são moralmente indiferentes; é o seu desregramento que as torna más. Porém, enquanto reguladas, elas são boas e obedecem fielmente à vontade e à razão. E é no vigor de alma que vem ao homem pelo fato de Deus governar nele a razão, a razão dominar a vontade, e esta dominar a sensibilidade, que é preciso procurar a serena, nobre e eficientíssima força propulsora da Contra-Revoluão.”[10]

E foi essa virtude que levou a Igreja e o Grande Carlos a uma reação tão enérgica e categórica, entretanto com suavidade e bondade, como a história nos indicou contando todos os apelos e favorecimentos feitos aos hereges para que se retratassem e voltassem ao seio da Esposa Mística de Cristo.

Pe. Millon Barros de Almeida


[1] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 4 ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p. 65, 66, 72

[2] GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica Vol. II: EDAD MEDIA: La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2003. v. 2, p. 190.

[3] OTTO, Ludwig. Manual de Teología Dogmática . 7 ed. Barcelona: Herder, 1997, p. 253.

[4] GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica Vol. II: EDAD MEDIA: La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2003. v. 2, p. 190.

[5] Idem., p. 192.

[6] Idem., p. 190.

[7] DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos Símbolos definições e declarações de Fé e Moral . São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, n. 614.

[8] Cf. GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica Vol. II: EDAD MEDIA: La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2003. v. 2., p. 193.

[9] Idem.

[10] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 4 ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p. 130-131.

Bibliografia

CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 4 ed. São Paulo: Retornarei, 2002.

DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos Símbolos definições e declarações de Fé e Moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007.

GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica. II. Edad Media: La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2003. v. 2.

OTTO, Ludwig. Manual de Teología Dogmática. 7 ed. Barcelona: Herder, 1997.